A heresia do papa Francisco

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 14/06/2022)

Estava a ler textos sobre a “guerra da comunicação” em que estamos envolvidos, felizmente sem os custos em sangue e destruição da que ocorre na realidade do campo de batalha, na Ucrânia. Parti de um filósofo cujo pensamento conhecia um pouco, Paul Virílio, francês, autor de livros sobre as tecnologias da comunicação, e deste cheguei a um outro, desconhecido, Slajov Zizek, esloveno. Paul Virílio, com formação base em arquitetura, define a sociedade da informação como perigosa, já que a informática nos leva à perda da noção da realidade ao proporcionar uma quantidade gigantesca de dados.

É sobre a relação entre a realidade e a imagem que dela nos é transmitida que se travam hoje os combates da informação, desinformação, manipulação que nos são apresentados pelos meios de comunicação, que pretendem camuflar a sua qualidade de armas, atrás de um colete com a palavra PRESS, de uma direção editorial, ou de pastores com a pele de comentadores.

Para Zizek, com formação em sociologia, professor nas universidades de Lubiana e de Londres, o “real” é um termo que corresponde a um conceito enigmático, e não deve ser equiparado com a realidade, uma vez que a nossa realidade está construída simbolicamente; o real, pelo contrário, é um núcleo que não pode ser simbolizado, isto é, expresso com palavras ou com imagens. Só existe como abstrato. Para Žižek, a realidade tem a estrutura de uma ficção. Ou seja, acaba sendo apenas uma espécie de interpretação da “coisa em si”. Há quem não se limite a interpretá-la, mas a fabrique.

Esta minha tentativa de separar o real da realidade, de tentar entender as intenções de quem escreve o enredo da realidade que me é apresentada nas TVs, em particular, como arma de artilharia pesada, surgiu depois de ler e de confirmar tanto quanto possível a opinião do Papa Francisco sobre a guerra, em que, segundo os meios de comunicação e contra o discurso ocidental, terá criticado a Rússia pela crueldade na Ucrânia, mas dito que a guerra pode ter sido provocada, uma opinião que os manipuladores das TV (os grandes meios) escamotearam.

Sou agnóstico, mas reconheço as qualidades de coragem, inteligência e a capacidade de análise de personalidades religiosas, dos que têm uma visão do mundo criado e regulado por um Ente metafísico, que também determina o comportamento dos seres homens, lhes estabelece uma moral que não se reduz à crença, aos que conjugam fé e razão.

É o caso do Papa Francisco, que preside a uma instituição milenar, com influência histórica na vida dos humanos, em todo o planeta e em particular na Europa, que dispõe de uma dos mais eficientes serviços de informação mundiais e a quem presto a mais proveitosa atenção, assim como leio com proveito Tomás de Aquino, Santo Agostinho, ou o Padre António Vieira, os clássicos politeístas gregos, o escuto Dalai Lama.

O Papa Francisco tocou na ferida da discussão sobre aquilo que vemos nos ecrãs sob a aparência de informação, e que é, de facto, a criação de espetáculos da autodestruição humana, através das formas sofisticadas encontradas pelos meios de comunicação — o cinema, a televisão e a Internet — que utilizam as técnicas perigosas a que se referia Paul Virílio para promover o confronto com o “real”, com o objetivo de impor a ideologia hegemónica.

Este processo de espetacularização da destruição com fins políticos, com o objetivo de assegurar um poder, que o Papa Francisco deixa mais do que subentendido — quem quiser percebe — apoia-se na ideia, que a Igreja Católica, como outras desenvolve e cultiva, de que a autoridade é conferida com mais facilidade aos que falam da posição de vítima.

O esloveno Slajov Zizek reparou que o establishment americano conservador utilizou todas as potencialidades desta a lógica da vitimização (mártires e heróis) com o ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque para justificar sua atitude de domínio na política mundial a partir o início do terceiro milénio DC.

O governo americano, utilizou um fenómeno da realidade (provocado por quem? — deixa o Papa no ar a propósito da Ucrânia) para manipular e congregar as populações do seu império e levá-los a aceitar e a pagar uma outra realidade de violência, terror e intolerância, que, no caso das Torres Gémeas, teve a sua representação máxima no fundamentalismo islâmico, e justificou a invasão do Afeganistão, e o incêndio do Médio Oriente é agora trocado pela invocação da “brutalidade russa” na Ucrânia. A repetição do mesmo número com sucesso, que o papa ensombreceu.

Esse enfrentamento de realidades e ficções foi traduzido pelos meios de condicionamento da opinião na dicotomia pela oposição: “Eixo do Bem x Eixo do Mal” — “Ocidente x Oriente”. Esta contextualização maniqueísta foi amplamente difundida através dos termos ideologizados do Bem e do Mal absolutos que comprometem a interpretação dos factos.

Ambos os acontecimentos, o 11 de Setembro, a guerra na Ucrânia, mas também o ataque à Sérvia, ocorreram de maneira camuflada e justificada sem direito a contraditório, nem a critica, pelo princípio de que a sociedade ocidental é essencialmente democrática e permite a coexistência de diversas opiniões. Pelo que é essencialmente Boa e pratica o Bem. Se essa é a realidade, tudo o que a contrarie é antidemocrático e antiocidental, q.e.d.

A postura autoritária do governo norte-americano, a elevação a objeto de culto (sacralização) do atentado de 11 de setembro e agora de Zelenski só deixa uma alternativa ao público consumidor de mensagens visuais: pense, reflita, mas chegue à conclusão “certa”. Fora de nós não há salvação!

Slajov Zizek chamou a estes atos de manipulação “efeito espetacular do real”. O Papa Francisco veio tirar, mesmo que muito cautelosamente, o véu que cobria a caixa do truque do ilusionista Biden. Dali, do sacrário da Casa Branca, não vai sair uma pomba branca…


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2 pensamentos sobre “A heresia do papa Francisco

  1. Muito bem. Enquanto Michio Kaku tem a teoria dos universos paralelos, os EUA/UE têm a prática das realidades paralelas. Quem vê um canal Ocidental tem uma realidade, quem vê um canal NÃO Ocidental tem outra realidade completamente diferente.

    Por cá houve a “operação militar pós 11-Setembro” e a “tristeza pelo fim do feminismo em Cabul”. Por lá houve a invasão brutal e injustificada do Afeganistão, e a alegria pelo fim da ocupação criminosa. São de facto duas realidades paralelas, mas só uma tem ligação com o real, e obviamente não é a Ocidental.

    Quando li “Lubiana”, não percebi do que o Sr. Carlos Matos Gomes estava a falar. Após pesquisar rapidamente, fiquei a saber que é o nome italiano dado à capital da Eslovénia, que em português se chama Liubliana, tal como eu a sempre conheci.

    É por estas e por outras que, tirando as obrigatórias adaptações para alfabetos diferentes, sou defensor que os nomes de países, cidades, e pessoas, não devem ser “traduzidos”, mas sim escritos da mesma forma (ou pelo menos com o mesmo som) em todo o lado.

    Incomoda-me sempre que ouço estrangeiros falar de “Lisbon” ou “Azores”, ou quando ouço portugueses falar de “Moscovo” ou “Londres”.
    É Lisboa, é Açores, é Moskva, e é London.

    Pior que isto, só os que insistem em chamar Holanda aos Países Baixos. Era como chamarem Alentejo a Portugal…

    Até nos mapas temos realidades diferentes e inconsistentes com o real. E não é só uma questão linguística.
    Uns chamam-lhe Kosovo, outros chamam-lhe sul da Sérvia. Uns chamam-lhe sul de Marrocos, outros chamam-lhe Sahara Ocidental. Uns chamam-lhe Guantánamo, outros chamam-lhe gulag em Cuba ilegalmente ocupada. Uns chamam-lhe separatistas pró-russos, outros chamam-lhe povo do Donbass finalmente livre dos Nazis. Uns chamam-lhe única democracia do Médio Oriente, outros chamam-lhe Apartheid. Uns chamam-lhe Europa, outros chamam-lhe colónia de vassalos dos EUA. Uns chamam-lhe Império das Mentiras, outros chamam-lhe Ocidente. Uns chamam-lhe “herói da resistência que só por acaso tem uma suástica”, outros chamam-lhe Nazi. Uns chamam-lhe Presidente da Venezuela, outros chamam-lhe somente Guaidó, e há ainda outros (Naci Pelosi, dos “Democratas”) que, agora que precisam do petróleo do Maduro, lhe chamam: “who?”…

    São de facto duas ou mais realidades. Mas só uma é real. Que haja uma indústria de infotainement e de exploração emocional a inventar uma dessas realidades, em vez de um grupo de profissionais da informação que sigam um código deontológico para nos tentar informar o mais possível perto do real, é uma tragédia. É a tragédia de Julian Assange, de Shireen Abu Akleh, de Jamal Kashoggi, e de tantos outros. É a tragédia do princípio do fim do “final da história”. E vamos todos pagar tão caro para ver isto da primeira fila. Todos a olhar para o mesmo palco, mas uns a ver o que se está a passar, e outros de olhos fechados a “ver” o que lhes juram a pés juntos que se terá passado…

    A verdade não foi a primeira a morrer. Antes disso, foi preciso um plano generalizado para matar a dignidade, para que em vez de termos uma sociedade solidária a lutar pela verdade, tenhamos antes uma competição de indivíduos egoístas a lutar para ver quem recebe o promoção por ter sido quem mais tiros deu na verdade.
    Chama-se a esse plano generalizado de “democracia liberal”.

    Se fazes parte do pensamento único, sabes mentir, só queres saber do teu umbigo, gostas de obedecer a quem tem mais poder que tu, e adoras atropelar os outros em nome da tua ambição, então parabéns. Vais chegar longe. Este sistema foi desenhado para sociopatas como tu. Hás de ser CEO disto, ou político ocidental daquilo.

    Se,pelo contrário, preferes questionar, vais atrás da verdade, preocupas-te com os outros, as hierarquias incomodam o teu ser cidadão, e adoras mesmo é cooperar em objetivos colectivos, então prepara-te pois este Mundo vai-te comer vivo. Vais ser chamado de tudo e mais alguma coisa. Ou pior, vais ser extraditado para cumprir 175 anos de prisão no gulag americano, ou assassinado na Amazónia. Aquilo que tu queres é um Mundo melhor para todos, mas isso é incompatível com um Mundo mais lucrativo só para alguns, tal como planeado em Davos…

    Por isso é tão importante a tal indústria de infotainent que vende realidades alternativas. Só assim se controlam as multidões e se garante a “paz social” podre, em cima da qual se implementa o tal plano generalizado. Imagina só como estaria no vermelho o lucro do Complexo Militar Industrial se a sociedade olhasse para uma suástica e visse o Nazi real. Não pode ser! Há que colocar cada indivíduo isolado no respectivo lugar, ora com a bandeirinha amarela e azul e a queimar livros do Dostoyevsky, ora a fazer like aos posts dos bilionários que vão passear ao espaço, ora a votar em quem chama deplorável aos derrotados do sistema, ora a chamar estalinista a quem quer salvar o SNS, ora a chamar “extrema-direita” a quem veste um colete amarelo, etc.

    E quando finalmente se descobre a careca às “armas de destruição massiva no Iraque”, ao “genocídio dos Uighures na China”, ao “financiamento venezuelano do Podemos”, à “crise da bancarrota do Sócrates”, ao “Putinismo do PCP”, ao “sucesso que será o Euro”, etc, já não faz mal. Os objetivos da oligarquia já foram entretanto cumpridos, e o povinho já está entretido com a “realidade” seguinte.

    E ai do Papa que a tente desmascarar, senão até ele se torna alvo dos ataques e insultos feitos pelas 150 agências internacionais ao serviço da guerra de informação de Kiev, a cidade que é a mais recente sucursal da Lockeed Martin e companhia.

    E tu, ou ajudas a espalhar a “realidade”, ou acontece-te como àquela jovem jornalista de Donetsk, que por ter dito o que viu (os seus vizinhos a serem mortos em zonas civis pelos bombardeamentos dos Nazis com bombas da NATO), teve todo o seu trabalho censurado (é para isso que servem as multinacionais da internet com servidores no país do “Patriot Act” ou países seus vassalos), e pode ser condenada a 3 anos de prisão por um “tribunal” da Alemanha. É este o problema maior de se matar a dignidade para permitir que a verdade seja a primeira a morrer: é que a seguir, a segunda a morrer é a liberdade, e quem mais lutar por ela, mais perseguido será. O Edward Snowden que o diga.

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